"Lava-pés, lençóis e almas”, de Sônia Eva Tucherman
Com prazer apresentamos o texto “Lava-pés, lençóis e almas” – da psicanalista da SBPRJ Sônia Eva Tucherman, premiado pelo Comitê da International Psychoanalytical Association (IPA), em Cultura no Concurso de contos de 2021: O ANALISTA COMO NARRADOR DE HISTÓRIAS.
Lava-pés, lençóis e almas
(Língua original: português)
Trago mais uma trouxa de roupas pra casa. Tiro o rol do bolso e enfio dentro dos panos. Olho pras outras trouxas que me esperam e sinto, como sempre, um medo horrível de confundir alguma peça. As madames confiam em mim, tenho freguesia de mais de vinte anos, e Deus me livre de perder alguma freguesa agora, com o menino doente. Amanhã bem cedo vou tentar pegar senha no posto. O doutor tem que ver o menino, febrão há oito dias e não tem chá que dê jeito. Esse pequeno é minha esperança. Bom menino, oito anos, já sabe ler, faz as contas da lavagem e da pendura na venda. Deus me livre de perder esse menino! O mais velho já é da rua, nem sei onde anda, se lembrar, o coração aperta tanto e de um jeito que só mãe conhece. Tem mais um que saiu ao pai, sumido no mundo, é só cachaça, mulher e baralho. Tem também a menina que podia ajudar no tanque mas apareceu embuchada, fica por aí pelos cantos da casa, chorando, gemendo, vomitando e eu fico com dó e com raiva. Jesus que me perdoe, mas dá muita raiva ver essa criança pelos cantos com uma criança no bucho. E fico tentando afastar um pensamento que me martela — ai, Jesus, se for verdade! Vi uma vez meu homem roçando feito gato nas pernas da menina. Deus me ajude que não seja ele o pai.
O tanque me ajuda a tocar a vida. Ligo o rádio pra distrair enquanto tiro do molho, esfrego, esfrego, bato a roupa, esfrego, enxáguo, pego outra roupa, e vou assim no ritmo da música até acabar a primeira trouxa. Às vezes canto alto pra não ouvir meus pensamentos. Às vezes canto baixinho pra não chorar. Às vezes fico em silêncio pra ouvir a história da música. Às vezes fico em silêncio e não ouço nada. Nada. Nada está acontecendo, eu não estou aqui, esta não sou eu e eu ainda vou nascer.
Acabei com a primeira trouxa e só pego na segunda quando esta estiver seca. Assim não confundo as roupas. Deus me livre de confundir alguma peça, não posso perder freguesia agora.
Ponho roupas pra quarar no quintal. Sou das poucas que ainda faz isso. Conheço meu ofício e gosto de ver os sorrisos admirados das madames, ohs! e ahs! E algum trocado extra. O quintal fica todo branco, coberto de lençóis. Parece um cartão de Natal, e quem sabe Papai Noel aparece no meio dessa neve trazendo uma boneca de presente pra mim. Continuo querendo — até hoje! — aquela boneca que muda de roupa, que a garota loura me emprestou um pouquinho naquele dia, naquela casa grande, onde fui com minha mãe buscar roupa pra lavar. Labuta no tanque é coisa antiga, vem d’avó da vó.
Um dia fiz um boneco de neve com os lençóis que mamãe lavava. Ficou lindo, aquele boneco de neve ali no quintal da gente, cheirando anil. Amarrei cintura, braços e pernas com os barbantes da padaria. Botei nariz de cenoura e tudo, igualzinho à figura do calendário pendurado na venda. A alegria derreteu nas lágrimas da mãe que viu no meu boneco um amarfanhado de panos imundos, e não a magia que eu via. A cenoura era pra sopa do bebê; os barbantes, pra capacho de tricô. Estraguei um tesouro. Menina, seis sete anos, entendi que a gente carecia de tudo. Não podia gastar sonho à toa.
Na quinta-feira santa eu sonhava. Gostava de ver o padre lavando os pés dos mendigos. Achava engraçado aquilo do padre ajoelhado, o nariz bem perto dos chulés, e meu sonho era sentar naquela cadeira alta, o padre pegando meus pés — estariam cheirosos! –– passando aquele paninho devagar, igualzinho à Cinderela.