Ainda sob o impacto da morte de minha inesquecível amiga, Marialzira Perestrello, transcrevo abaixo as palavras que pronunciei em sua homenagem, em setembro de 2009, na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
Estava eu tomando posse em minha cadeira no Instituto Histórico e Geográfico, há alguns anos, quando uma senhora, sentada no saguão, foi abordada por outra senhora, uns quinze anos mais jovem, que lhe dirigiu a palavra em francês, dizendo coisas esotéricas que pareciam a senha de uma sociedade secreta: Ce fut pendant l´horreur d´une profonde nuit - era durante o horror de uma noite profunda. A senhora mais velha também devia fazer parte da mesma sociedade secreta, porque sem hesitar disse uma frase igualmente misteriosa: Ma mère Jézabel devant moi s´est montrée - . Minha mãe Jezabel diante de mim se mostrou”. A senhora mais jovem continuou: Comme au jour de sa mort pompeusement parée – como no dia de sua morte, pomposamente adornada. Ao que a outra retrucou imediatamente: Même elle avait encore cet éclat emprunté – ela tinha mesmo aquele brilho artificial. E a mais jovem: dont elle eut soin de peindre et d´orner son visage – com que ela pintava e ornava seu rosto, E a mais idosa, encerrando enfim a cerimônia de reconhecimento mútuo: pour réparer des ans l´irréparable outrage - para reparar dos anos o irreparável ultraje.
A senhora mais velha era minha mãe. A mais jovem era Marialzira Perestrello. AS palavras enigmáticas vinham de uma tragédia de Racine, Athalie. E como infelizmente a realidade não é um folhetim de Alexandre Dumas, não havia nenhuma sociedade secreta. O que aconteceu foi que Marialzira quis conhecer minha mãe, e não havendo por perto ninguém que a apresentasse, resolveu apresentar-se a si mesma, valendo-se para isso da tragédia de Racine, pois ela sabia, graças ao meu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, que minha mãe, ex-aluna do Sion, conhecia de cór trechos inteiros dessa peça. Achou que o meio mais prático de estabelecer um contato era declamar o primeiro verso do episódio mais famoso da tragédia, “O sonho de Athalie”. O resto, pensava ela, viria naturalmente. Foi o que se passou. Minha mãe, aturdida com a iniciativa inesperada de Marialzira, reagiu automaticamente, dizendo o verso seguinte, e assim por diante, até o final. Com isso os salões do Instituto Histórico Instituto Histórico testemunharam um dueto poético digno de outros salões, os de Madame de Rambouillet ou de Madame de Sévigné, no século 17.
Contei essa historieta para ilustrar a originalidade do pensamento e do modo de ser de Marialzira. Qualquer pessoa começaria a conversa fazendo algum tipo de auto-apresentação; Marialziria recitou versos, para ela o veículo natural de comunicação entre seres humanos.
A homenageada desta noite nasceu no Rio de Janeiro em 5 de março de 1916, em Ipanema, quando esse bairro era um areal e onde só passava o bonde. Seu pai foi o grande jurista Pontes de Miranda. Sua mãe, Beatriz, era mulher de idéias avançadas, que lutou pelo voto feminino e fez questão de que suas quatro filhas cursassem Faculdade. Sabemos por sua poesia e pelo mini-curriculo que ela própria redigiu,que o ambiente da casa paterna era extraordinariamente culto. Grandes escritores e cientistas eram amigos da família. Entre eles estavam Carlos Chagas, Artur Neiva, Juliano Moreira, Vila Lobos, Goeldi e Tasso da Silveira. Nesse ambiente, a cultura lhe foi incutida espontaneamente. Lembra-se de retratos de Goethe e Beethoven, em tamanho natural, e sobretudo da sala das corujas, com milhares de livros de literatura, de sociologia e matemática. Em salas conjugadas, havia 20.000 obras de direito. Ouvia-se música de Bach e o pai escrevia poemas sobre seus compositores favoritos e os recitava. Lia muito, desde cedo. Quando menina, devorava os livros da Bibliothèque rose. Mais tarde, orientada pelo pai, interessou-se pela literatura alemã, te